Narrativas de pathos e suas vicissitudes: amplitude e inconformidades semânticas
*Marília Velano
O sofrimento mental encontrou diversas expressões ao longo da sua história e é bem recente sua captura pelos discursos médicos científicos. Todo aluno de psicopatologia já ouviu falar da etimologia da palavra pathos que significa ao mesmo tempo paixão, sofrimento, padecimento e passividade. Ir até o rabo da palavra pathos e tentar garantir a sua amplitude semântica é promover um descolamento do sofrimento como exclusivamente patológico que deve ser, a qualquer custo, remediado. As representações modernas de pathos expressaram sua inconciliável relação com as noções de saúde e normalidade. Contemporaneamente esta relação traz implicações diretas à questão da gestão da saúde, suas estratégias e técnicas correspondentes, uma vez que é em torno de pathos que se construiu o eixo ordenador das relações biopolíticas[1].
Pathos, esta paixão, guarda algumas semelhanças com a pulsão de Freud e suas vicissitudes, seus destinos singulares tradutores da forma como sofremos, amamos e odiamos. Texto redigido durante a primeira guerra mundial, A pulsão e seus destinos (1915) destaca o campo da especificidade da clínica psicanalítica, desvendando os processos subjacentes às nossas escolhas amorosas e suas consequências. O texto traz questões que foram primorosamente distribuídas em três eixos na edição das Obras incompletas de Sigmund Freud –A pulsão e seus destinos – a questão linguística, epistemológica e clínica. Do ponto de vista epistemológico, a engenhoca freudiana, forjada no conceito de pulsão, se inscreve de forma curiosa nas ciências da natureza porque reúne “a pretensão epistêmica repousada o modelo naturalista da ciência e de confiança inabalável no valor cognitivo e heurístico da ficção e do mito. Tudo isso porque diante daquilo que não se deixa dizer, ou não se deixa dizer segundo a linguagem protocolar da ciência, Freud nunca recuou.” (Ianini, 2012, p.109).
O “esforço de dizer segundo a linguagem protocolar da ciência” pode ser uma exemplar definição do pathos que ordena os sistemas de classificação contemporâneos e delimita uma nova modalidade descritiva do sofrimento psíquico[2]. Abandona-se, por assim dizer, o valor heurístico da ficção e do mito e ajustam-se as modalidades de sofrimento àquilo que pode se deixar dizer pela linguagem protocolar da ciência. Esta é a posição filosófico-metodológica que sustenta a classificação nos manuais de transtornos mentais: pretensão empírica de descrever os comportamentos diretamente observáveis sem qualquer proposição teórica a respeito do sujeito. Ocorre que esta escolha metodológica traz implicações diretas tanto para o sujeito que se submete à classificação quanto para a estrutura narrativa do sofrimento psíquico que se deduz desta prática semiológica. E é neste ponto que gostaríamos de inaugurar a seção que se ocupará dos textos sobre as Narrativas da paixão e suas vicissitudes tentando compreender as modalidades contemporâneas de classificação dos transtornos mentais em sua relação com a falência da arte de narrar.
A constatação da falência da arte de narrar tem sido amplamente discutida entre os mais diversos coletivos do nosso tempo. A este respeito, acompanhamos recentemente, sua influência decisiva na criação de um grupo de jornalistas que se propuseram a fazer uma “narrativa independente” das manifestações de junho de 2013. Dispondo de recursos modestos como um celular e um computador estes jovens, cuja disponibilidade para narrar o evento era -ao contrário do seu aparato material- soberba, penetraram nas mídias tradicionais e impuseram seu modo de narrar aqueles acontecimentos. Os jornais, de repente, precisavam das imagens disponibilizadas pela mídia independente e toda cobertura que não os levasse em consideração parecia capenga e pouco real.
A constatação da extinção da narrativa foi anunciada por Benjamin (O narrador, 1936) e está relacionada ao empobrecimento da capacidade de comunicarmos nossas experiências que, passando de pessoa a pessoa é “a fonte que recorreram todos os narradores”. O autor apresenta dois representantes arcaicos da figura do narrador que se intercruzam de diversas maneiras, seria, então, a figura do camponês sedentário e do marinheiro comerciante. O narrador estaria representado como aquele que tem muito a contar, como um viajante, que vem de longe ou como aquele que conhece a sua história e tradições. O primeiro sinal da decadência da narrativa foi apontado por Benjamin como o surgimento do romance. Essencialmente vinculado ao livro e à invenção da imprensa, ele se distanciaria das tradições orais e de todos os outros tipos de prosa como as lendas, contos de fada e novelas. Desta maneira o narrador vai “retirar da sua experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros incorporando as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes”. (p.201). O romance, ao contrário, tratar-se-ia de uma segregação que surge a partir do indivíduo isolado que descreve a vida humana anunciando “a profunda perplexidade de quem a vive”.Ainda discorrendo sobre as formas épicas que contribuíram para a falência da narrativa Benjamin apresenta uma forma de comunicação que é ainda mais ameaçadora à narrativa: a informação. O saber então que estava autorizado ao marinheiro comerciante ou camponês sedentário deixa de ter sua importância e passa a ser substituído pela informação que permite uma “verificação imediata”. A informação será responsável pelo declínio da narrativa e por isso acontece de termos acesso e conhecimento às notícias do mundo todo e sermos, ao mesmo tempo, “tão pobres em histórias surpreendentes (Benjamin, 1936)
Seria o caso hoje de um sujeito que sabe dizer que está depressivo ou ansioso chegando até mesmo a verificar no Google a qual CID pertence, mas que, por outro lado, fica mudo frente a simples questão de porque se encontra nesta situação. A expropriação da experiência, e neste caso da experiência de sofrer, é uma máxima do nosso tempo. Sofremos, conseguimos dizer, porque as mãos gelam ou porque uma espécie de tristeza não nos deixa sair da cama, mas o sentido desta experiência nos foi roubado, ou melhor, só é possível dizê-la se recorremos mudos à linguagem protocolar da ciência.Está aberto o convite às narrativas da paixão em sua amplitude e inconformidade semântica.
Referências Bibliográficas
Benjamin, Walter Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, Brasiliense, São Paulo, 1994
Freud, S A pulsão e suas vicissitudes (1915), Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Freud, Rio de Janeiro, Imago
Freud, S. A pulsão e seus destinos, Obras Incompletas de Sigmund Freud, Belo Horizonte, Autêntica, 2012.
[1] Este é o argumento do VI congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental XII Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental, Belo Horizonte, 4 a 7 de setembro de 2014. Argumento disponível em http://www.psicopatologiafundamental.org/uploads/files/vi_congresso/vi_congresso_internacional_de_psicopatologia_fundamental_-_argumento.pdf
[2] Este assunto foi discutido em um excelente dossiê publicado na revista Cult, setembro de 2012, A psiquaitrização da vida cotidiana. Dossiê DSM-V.
Sobre a autora:
Marília Velano, Psicóloga formada pela UFMG, Psicanalista, Mestre em Psicologia pela Université Paris VII Denis Diderot, Membro associado do Departamento de Psicanálise da Criança do instituto Sedes Sapienteae, Professora de Psicopatologia e Teoria Psicanalítica da Universidade Paulista, Supervisora Clínica.
